O mês de junho marca o início de mais uma Eurocopa. O maior
torneio de seleções da Europa terá como sede Polônia e Ucrânia em sua 14ª
edição. Dentro das quatro linhas, serão diversos países em ação; desde as
favoritas Espanha, Alemanha e Holanda; passando pelas tradicionais Itália, Inglaterra
e França e deixando sempre espaço para uma grande surpresa. Fora dos gramados,
porém, uma história volta à tona. Há setenta anos, um time de futebol criado na
Ucrânia levantou a moral do povo que sofria e sangrava com as atrocidades da
Segunda Guerra Mundial. Esta equipe foi o FC Start.
INÍCIO:
Jogadores do FC Start (camisas escuras) e os alemães do PGS (de branco): foto tirada no dia da vitória por 6 a 0 |
Formada em sua maioria por jogadores do poderoso Dínamo de
Kiev, a equipe representava uma padaria¹. O dono do local, o tcheco Josef
Kordik, empregou diversos atletas que estavam perdidos – alguns à beira da
morte – na Kiev tomada pelos nazistas. Kordik desejava montar seu próprio time,
e um encontro casual com o goleiro Nikolai Trusevich foi o pontapé inicial do
projeto. Trusevich, reticente no início, aceitou o desafio e recrutou seus
companheiros de Dínamo, além de outros três jogadores do Lokomotiv de Kiev. O
mais importante para aqueles atletas, naquele momento, era a segurança que o
trabalho na padaria lhes proporcionava em relação aos poucos outros que
sobravam na cidade sitiada.
Pouco antes da ocupação nazista completar um ano no território ucraniano, os alemães afrouxaram o rigor no toque de recolher e nas
regras de deslocamento para cidades vizinhas. Além disso, eventos esportivos
foram liberados. O campeonato de futebol seria disputado por seis equipes, e o
FC Start, recheado de estrelas, não ficaria de fora. A primeira partida foi
contra o Rukh, e a vitória foi acachapante: 7x2. Nas partidas seguintes, o time
da padaria, rubro como o sangue que vinha sendo derramado, reiterou sua força e
deu aos kievanos um motivo mínimo para sorrir. O povo passou também a alimentar
esperanças de salvação quando os rumores da derrocada nazista em Stalingrado
chegaram. O FC Start já era uma dor de cabeça para os alemães.
Cartaz de anúncio da "revanche" |
Os nazistas passaram a levar o torneio mais a sério, mas
continuaram levando uma surra do FC Start. O time da padaria venceu o PGS (time
composto por soldados de uma unidade militar alemã) por 6 a 0 e depois venceria
os húngaros do MSG por 5 a 1 e 3 a 2. Aquilo tudo estava indo longe demais. Os
alemães apostaram, então, todas as suas fichas no Flakelf, time formado por
soldados das baterias antiaéreas e da Luftwaffle (a força aérea nazista).
Resultado: 5x1 para o FC Start. No dia seguinte, centenas de cartazes já
anunciavam a revanche. Um golpe sintomático que mostrava, definitivamente, que
as coisas já estavam muito sérias.
O “JOGO DA MORTE”:
FC Start e Flakelf (de branco) perfilados antes da partida que entrou para a história do futebol ucraniano |
O jogo, realizado 72 horas depois do primeiro encontro,
lotou o estádio Zenit, onde o Start jogava. O Flakelf recebeu reforço de
jogadores mais habilidosos, e ainda contava com um oficial da SS (a polícia
especial de Hitler) como árbitro. A partida começou muito nervosa. O Start se recusara a fazer a saudação nazista para a tribuna de honra do estádio. Em um dos
lances, Trusevich saiu para fazer uma defesa, recebeu um chute na cabeça e
desmaiou. O juiz não fez nada, a não ser esperar o goleiro voltar a si. Poucos
minutos depois, o Flakelf abria o placar, mas ao final do primeiro tempo o
Start já tinha revertido o marcador para 3 a 1. No intervalo, um outro oficial
da SS entrou no vestiário dos ucranianos, elogiou a perícia do time e disse que
o Start não poderia esperar a vitória. Alertou que os atletas avaliassem as
consequências. Os jogadores do Start não se importaram. Venceram por 5x3, e
ainda se recusaram a fazer um gol ao final do jogo, humilhando ainda mais o
adversário³.
O APITO FINAL:
A retaliação não foi imediata. Os nazistas não queriam dar
mártires aos ucranianos, e ainda deu tempo para o Start vencer o Rukh por 8 a 0
na semana seguinte. O dono o Rukh, humilhado, fez coro para a prisão dos
atletas do time da padaria, que seriam levados para o comando da Gestapo para
serem interrogados e espancados. Quem mais sofreu nas mãos da Gestapo foi meia Korotkykh que, por ser um oficial ativo da NKVD (precursora da KGB soviética),
foi separado de seus companheiros e torturado até a morte. Logo depois, os
demais foram conduzidos para o campo de concentração de Siretz.
Monumento em homenagem aos jogadores |
Em Siretz, Trusevich e seus companheiros passaram pelo
inferno que muitos outros já haviam passado nos campos de concentração. O ponta
Goncharenko² e o defensor-treinador Sviridovsky conseguiram fugir de Siretz, mas souberam
antes que três de seus companheiros (Trusevich, Klimenko e Kuzmenko) haviam
sido mortos. Antes de levar o tiro fatal, o goleiro Trusevich gritou alto: “Krasny
Sport ne umriot” (“O esporte vermelho nunca morrerá”). O exército de Stálin
retomou Kiev em 1943. Antes do início da guerra, a cidade tinha uma população
de cerca de 400 mil pessoas. Quando a luta terminou, eram apenas 80 mil
sobreviventes. Neste ano, aproveitando os 70 anos da partida e a Eurocopa, foi lançado um filme inspirado na história do goleiro Trusevich. O longa "Match" (trailer, aqui) ilustra, de maneira fantasiosa, como teria sido a história dos heróis ucranianos.
¹ Khlebzavod: uma fábrica de pães, já que o estabelecimento
é muito diferente do que estamos acostumados a ver por aqui.
² Quando a guerra começou, Goncharenko teve a preocupação de
guardar suas chuteiras e camisas de futebol, pois acreditava que o esporte iria
prevalecer mesmo no meio do conflito. O tempo provou que ele estava certo,
quando foi chamado por Trusevich para integrar o FC Start.
³ Klimenko driblou grande parte da defesa adversária,
inclusive o goleiro. Quando chegou na linha do gol, virou-se e chutou a bola
para o meio de campo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário